«Bem que se pode, se pensarmos nisso, representar uma sociedade através de uma balança. De um lado, num dos pratos, pões penas; do outro lado também. Só isso – penas. [Não se trata da Pesagem das Almas do Antigo Egipto. A não ser que falemos de uma alma colectiva.] Se juntares milhares apercebes-te que os pratos vão começar a ficar cheios – e que a balança vai começar a pender para um dos lados.
«Penas, que é como quem diz: pequenas coisas – das mais pequenas; coisas em que ninguém repara, mas que são, de resto, os compassos quase imperscrutáveis que marcam o ritmo de uma comunidade.
«Um lado e o outro lado, portanto, um prato e o outro prato – silenciosos e leves ao início, vociferantes e pesados no fim. Dois lados sempre concorrentes.
«Queres exemplos? Eu dou-te dois – que passam entre as malhas, cada vez mais lassas, da rede da nossa observação e do nosso discernimento. Porque há coisas que nos deviam chocar; e que nos deviam enlevar – atitudes de descaso e de apoucamento; acções de generosidade. Mas ninguém olha para elas. Cá fora, fora dos pixels e dos padrões das redes sociais, já ninguém tropeça em nada que não seja óbvio – seja bom, seja mau. Bem.
«Dois velhos jantavam – sobre a mesa uma garrafa de vinho, vertido em copos feitos para sumo, e frango assado comido à força de dedos. Ao lado deles um adolescente, que os conhecia. A certa altura um dos velhotes vira-se para o rapaz e diz-lhe algo assim: “Vocês, pequenos, hoje não sabem tantas coisas como a gente da minha altura. Diz-me: quantos são X vezes Y?” O rapaz, solícito e respeitoso, respondeu pronta e acertadamente. O velho inquiridor, não desarmando – e borrifando-se afinal para a resposta –, desinteressa-se do jovem, vira-se para o outro velho e diz: “Pois, mas, no nosso tempo, o que se aprendia na escola era mais do que estes pequenos agora aprendem.”
«O rapaz ficou assim, desiludido, a olhar para o tempo. Percebes o que aqui se passou?
«Ao invés... Entraram uma mãe e uma filha num bar. A mãe pede cigarros e paga com uma nota de 20 euros – depositada com hesitação, algum sentimento de culpa porventura, sobre a mesa. A filha, uma menina que teria uns 10 anos, com voz baixa implora um chocolate – desses que são sorteados quando se inserem, numas máquinas, 50 cêntimos; uma fita de cor dentro de uma bola que é devolvida pela máquina anuncia a qualidade e o tamanho da guloseima. A mãe, não dando ouvidos, sai porta fora. A menina, vencida, segue-a cabisbaixa. Eu e o barman, que é meu amigo, ficámos a observar esta cena. Daí a 30 segundos volta a criança, com 1 euro, e pergunta – como é que fazia para tirar o chocolate. O meu amigo diz-lhe: “Espera, filha, isso não é 1 euro, são 50 cêntimos. Deixa-me trocar o dinheiro.” Vi depois que saíra um desses chocolates pequenitos, que nem a vista alegravam. Intuí o que o meu amigo – ele, a quem já vi dar de comer e beber a gente sem dinheiro – iria fazer. Deu à menina, sem alarde, um chocolate enorme – um bloco rectangular de 12 por 30 centímetros, pouco mais ou menos – que não correspondia ao resultado poucochinho do sorteio da máquina. A menina saiu a correr do bar, no encalço da mãe, felicíssima. Eu virei-me para ele e disse-lhe: “Eu sabia que tu ias fazer isso.” E ele sorriu.
«Não é preciso muito, enfim, para encher os pratos desta balança. E não é preciso muito para que um dos pratos vença, inexoravelmente, o outro.»
[Crónica publicada no JM, 05-III-2016, p. 2.]
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