domingo, 12 de junho de 2016

Crónica 50 [A Menina. A Rapariga]

Todas as manhãs, a partir dos seis aninhos de idade, era obrigada a menina a várias tarefas: preparar o café matinal da mãe; cozinhar a refeição que o pai comeria ao almoço; tratar dos irmãos mais novos.
No casebre, situado perto do centro da freguesia, viviam, na altura, os progenitores e cinco crianças. Ela, a mais velha, ainda veria brotarem da mãe mais cinco irmãos – todos vindos a este mundo à razão de um por ano. De todos cuidaria, de todos cuidava – dos novos, dos maduros.
Só depois dos trabalhos da manhã é que – e já depois de ver, à distância, que a janela da sala de aula havia sido escancarada pela professora – podia dar uma carreira até à escola.
Na volta da escola, esperavam-lhe outros trabalhos: o asseio do casebre; cuidar – sempre – dos mais novos; cozinhar; coser; buscar e carregar alimentos, como sacas de semilhas pelos caminhos e veredas da freguesia. [Cansada, encostava-se a um barranco para recuperar forças, com o volume sobre a cabeça; as forças permitiam-lhe carregar o peso, mas não levantá-lo.]
Assim eram os dias. Dependendo do humor e da dureza da mãe, ia sofrendo – assim como os irmãos, uns mais, outros menos; dependia da predilecção – umas malhas de rachar pedras ou vagas. Por vezes, com os primeiros raios de sol dizia a mãe que, no fim da tarde, iria a menina levar um pancume. Noutras alturas, não era preciso esperar muito. Ou o castigo era aplicado na hora, com os instrumentos disponíveis – nada mais havendo à mão, a própria mão bastava; ou somente depois de a supliciada ter tido tempo de, a mando da verduga, ir colher, junto à praia, o instrumento do suplício – uma vara de salgueiro.
[O salgueiro adora o sal da maresia; e de certeza que, se pudesse, protestaria ser desterrado do seu habitat com o intuito de ajudar a espalhar vergões temperados de sal sobre a pele de uma criança.]
Dias cheios – e que mal acabavam. Nas noites, a mãe, enquanto bordava, exigia que, para sua companhia, a menina lhe lesse uma história [Aprendia a menina rápido – tanto as primeiras letras como as agruras do mundo.] Mas a meio da leitura, o sono descia sobre o cansaço. A mãe, para despertar a menina, dava-lhe dedaladas na cabeça.
[Curioso o destino daquele dedal – tanto protegia um dedo como servia de aríete contra o crânio tenrinho de uma criança.]
Bem. A menina fez-se rapariga – fez-se adolescente. Falecido o pai, vem a família para a cidade. A mãe arranja-lhe trabalho – ou escravidão – em casa alheia – a casa de um chefe de família que era um empregado bancário somítico, com uma mulher madraça e enfatuada e duas filhas babosas que até tarde molharam os lençóis.
[Ela lavava todos os dias a mijeira dos lençóis. Fazia isto e mais na casa – do mais imundo ao mais pesado, sem horas contadas. Dias cheios, de facto.]
Passava fome. [Quem visse a beldade que era, com cabelos louros e olhos azuis, não o diria. Mas passava.] Apertando-se-lhe um dia a fome na barriga, viu-se obrigada a... Foi-lhe ordenado que levasse, ao cão da casa, um prato de milho cozido frio para alimento do animal. No curto caminho até à casota, e longe dos olhares da dona, a rapariga devorou o milho. Por azar, na volta, caiu-se-lhe o prato das mãos. Para o castigo não foi preciso um aviso prévio ou uma vara de salgueiro ou um dedal. A mão da patroa bastou.
Malditos dias, esses, que teimavam em não querer acabar – dias cheios em histórias incompletas, em casas vazias.

[Crónica publicada no JM, 11-VI-2016, p. 2.]

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