sábado, 23 de janeiro de 2016

Crónica 39 [As Setas]

Quando a memória não chega – ou quando a realidade, seja o que isso for, é demasiado semelhante –, usemos a ficção. Como no monólogo que se segue.
«Nesse ano, já no século passado, aluguei um quarto. Nos primeiros tempos foi assim: tudo calmo, nada a reportar. Até que, um dia, apercebi-me que, no percurso que fazia a pé de regresso a casa, em todos os postes de iluminação, semáforos e sinais de trânsito, em todas as canalizações exteriores dos prédios, havia setas pintadas. Sim, setas – que apontavam na direcção do meu trajecto. Cheguei a contá-las mas não me lembro de quantas eram. Eram muitas. Só me lembro que, ao contá-las, e distraído, choquei uma vez com um mal-encarado. Ele prometeu que, se voltasse a acontecer, me rebentava todo – ele e o bando dele. Comecei a ver a vida a andar para trás – no sentido das setas, mas a andar para trás.
[...]
«Cala a boca. Deixa-me terminar a história. O que é que me encalacrou nisto tudo? A última seta ficava imediatamente antes da porta da minha casa. Pois, ‘tás a ver – agora descalça esta bota! O que é que isto podia significar? A verdade é que comecei a caminhar na rua com um medo dos diabos. A cada dia que passava, eu...
[...]
«Posso continuar? Andar armado? Mas eu sou algum Stallone, ou quê? Bem, ainda precisas dos restantes caracteres para acabar esta crónica, ou não?
[...]
«Quase 2000 caracteres. Pois, com espaços. Pronto. Um dia voltava eu, pé ante pé como um gato medroso – já viste um gato com medo? eu nunca vi, mas era assim que eu estava – e, chegado à porta de casa, aí mesmo onde a última seta acabava, vejo um tipo... careca, de barba desgrenhada e olhar um pouco estrábico. Assim como tu. Talvez mais velho ou mais novo, não sei. Tem calma, não te chateies. Ora bem, ao peito tinha ele uma tabuleta e na mão direita um sino. Na tabuleta vi escritas estas palavras: “Lázaro Aforista”. Lázaro, sim – ou leproso. Acho que já lhe tinha caído o nariz. Em todo o caso, ao lado das palavras, lá estava uma seta. Ele tangeu uma vez o sino e disse: «Saber o segredo é antecipar a morte.» Devia ser isto um aforismo. Temi pela minha vida.
[...]
«Tinha de temer, não? Segredo? Morte? Se estivesses lá tu... Bem, ele tocou o sino mais uma vez e pregou, como uma esfinge, outro aforismo – pensei eu: “Aprender pressupõe esta coisa: o amor pelo erro. Mas é um amor não incondicional, não romântico, não narcisista. É um amor que abandona a coisa amada quando ela muda – ou morre –, ou quando nós mudamos – ou morremos.”
«Uma coisa marada. Aprender? Amor? Erro? Para desanuviar, pensei em lhe dar uma moeda. Talvez fosse isso que ele quisesse. Quando levei a mão à carteira, o sino tocou de novo. Era de madrugada e ainda pensei que algum vizinho se manifestasse por causa do barulho. É que o sino e a voz do homem faziam estremecer a rua. Talvez não fosse má ideia se um vizinho chamasse a polícia. Pedi-lhe que me dissesse, afinal, o que queria. Disse-me ele: “No que verdadeiramente importa, se tens de pedir é porque não mereces – ou porque não és considerado merecedor.”
«Bem, já eram altas as horas e eu estava cansado. Era altura de acabar com isto. Tornei a perguntar, a gaguejar, se ele precisava de umas moedas para uma sopa. Ele encolheu os ombros e esfumou-se.
«No dia seguinte as setas tinham desaparecido. Mas a tabuleta apareceu-me no chão do quarto.»

[Crónica publicada no JM, 23-I-2016, p. 2.]

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