sábado, 6 de fevereiro de 2016

Crónica 41 [Então Quem Foi?]

Hoje, caro leitor, quero falar de uma expressão que considero fascinante. Já a tenho ouvido ser dita por vários indivíduos, em diversas ocasiões. [Até por mim, presumo – ainda que não me lembre agora de uma circunstância em especial.] Não me posso assegurar do facto de ser madeirense – no sentido de ser típica, característica, idiossincrática. Na verdade, não tenho forma de comparar com outras regiões do país, mas a intuição – apenas uma singela intuição, ou um singelo exagero – diz-me que, pelo menos, é uma expressão usada nesta nossa Ilha da Madeira. 
Vejamos esta história. Não tem muito tempo que, estava eu a fazer uma compra num pequeno estabelecimento comercial – assim uma mercearia com snack-bar –, ouvi um diálogo entre o funcionário da caixa registadora e o que parecia ser um zelador, ou vigilante, do condomínio. Este disse àquele que uma zona comum estava alagada. O funcionário replicou que compreendia – que era verdade, que também o tinha constatado –, mas que não tinha sido ele o responsável. E, nesta sequência, disse logo o vigilante: “Não? Então quem foi?”
E pronto. Fiquei a matutar. Como disse, já tinha ouvido aquelas palavras, em contextos semelhantes, mas desta vez um rastilho foi accionado na minha cabeça.
Vejamos o contexto a partir do qual brota a expressão – e, depois, o caminho que ela trilha.
Em termos esquemáticos, tudo começa com uma transgressão – pequena ou grande, não interessa. Pequena ou grande – isso dependerá da avaliação de quem irá acusar, avaliação que está, por sua vez, directamente relacionada com manutenção ou busca de poder. Depois, este acusador tem uma suspeita – ou uma certeza, forjada com poucos ou nenhuns factos. Todavia, não quer enfrentar, de peito aberto, o suspeito – ou os suspeitos. Vai então falar com a pessoa, ou as pessoas, de quem desconfia. Relata a transgressão em tom que, na aparência, soa como simplesmente informativo, mas que – quer pela voz empregue, quer pela linguagem corporal, quer ainda pelos apartes – indicia que o interlocutor é acusado e culpado. Este, por sua vez, proclama a sua inocência, dizendo, por exemplo: “Não fui eu.” O acusador, nesta dança, coloca o réu entre a espada e a parede, retorquindo: “Então quem foi?”
De forma dissimulada, esta última expressão afirma basicamente duas coisas. Em primeiro lugar, que a declaração de inocência, e o correspondente arrazoado apresentado, não convencem – e que, portanto, o acusado continua a ser suspeito ou culpado. Em segundo lugar, e ainda que não haja consciência disso, o suspeitoso, não se assumindo culpado, vê-se obrigado a ser um delator. Portanto, se não for culpado, tem de ser no mínimo um bufo. E aqui temos: ou a espada – a culpa –, ou a parede – a delação.
No fim de contas, é uma expressão que contém o seu quê de denúncia velada, o seu bocado de desconfiança, a sua parte de apoucamento dos factos, o seu tanto de acusação, a sua parcela de dissimulação, a sua quota de obrigação à delação – o seu, enfim, quinhão de cobardia.
Espero que um dia esta expressão acabe – que um dia deixe, por tudo o que parece significar e transmitir, de ter livre curso nas bocas e nas mentes deste meu povo. Porque, na verdade, todos nós já a proferimos. [Agora penso que também um dia a disse. Quer dizer, não estou certo – estou a ficar velho e a memória já me vai falhando.] Ai não, caro leitor? Nunca usou esta expressão? Então quem foi?

[Crónica publicada no JM, 06-II-2016, p. 2.]

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