sábado, 6 de agosto de 2016

Crónica 55 [Uma Infância]

Por causa deste Agosto que ferve, perguntei ao meu interlocutor – um homem com a minha idade, de barba preta e coçada – como tinha sido a infância dele. Boa? Má? Havia me recordado de uma crónica de José Saramago, sobre as férias da infância – «as únicas férias maravilhosas que já tivemos», «esses infinitos meses para os quais não havia projectos, porque então não os fazíamos e porque, mesmo antes de vividos, já eram realização.»
Porém, nem a lembrança desta referência literária nem uma qualquer boa intenção – penso que existiu, a intenção; e que seria boa – me salvaram da avaliação que da pergunta fez o meu interlocutor. Vi que ficou enfadado – ao início. Depois, os seus olhos vestiram uma capa vítrea de perplexidade – pelas memórias da infância que lhe começaram a assomar. E, com vagar, tocou ele uma melodia inexorável na harpa da voz.
Que tinha uma lembrança de quando ainda era bebé de berço. Que tinha a lembrança de uma jovem mulher, de cabelos de ouro, que o olhava do alto – para o berço. [Eu não disse nada.]
Que, passados uns anos, brincava um dia no chão, com um carrinho. Que de repente levantou a cabeça e olhou para a direita, para onde o sol estava. E que lhe advieram perguntas de um canto obscuro. “Porquê isto? Porquê o mundo? Porquê estes olhos, estas janelas? Porquê eu? Por que razão estou aqui? Porquê?” [Acrescentou que hoje tenta adormecer – que faz por adormecer, com ardor – estas perguntas. Calado – eu fiquei calado.]
Que um dia fitou o sol – e que o disco laranja toldou-se para um azul que pulsava. [Ele não usava óculos – nunca usou.] Que a sua professora primária perguntou à turma de que cor era o sol, e que ele – o melhor aluno, laureado com ênfase e regozijo – havia dito que era azul. Que a professora o havia increpado com ênfase e fúria. [Nada ripostei.]
Que ia até ao terraço da sua casa forrado de telas de alcatrão por causa das infiltrações. [No Agosto o alcatrão sobejava e ficava peganhento.] Que aí ficava – subia a uma nespereira raquítica e paciente, cujos ramos nunca partiram com o seu peso. Que olhava – olhava, sem tempo, a fímbria em que o mar se juntava à cor ocre do horizonte. [Assenti com a cabeça.]
Que o irmão lhe havia assinado a cara com um estralo, numa tarde quente de Agosto, perante os outros miúdos das vizinhanças. Que o seu destino tinha ficado escrito a partir desse momento.
Que gaguejava, que era zombado, que lhe teciam brincadeiras nas costas, que o empurravam e lhe espetaram pioneses nos braços. Que era sovado – à entrada da escola, dentro da escola, fora da escola. [Bullying – é assim que se diz, certo? Eu tossi. Continuei a ouvir.]
Que um dia, de noite, ao vir da casa de uns primos após um dia esquecido, viu ao longe três ou quatro miúdos que, para fugir do aborrecimento, de certeza que lhe iriam bater. Que, pressentindo essa intenção, partiu uma cana vieira e, dessa vez, se defendeu com uma coragem imperativa – correndo, depois, com abalo e suor o caminho íngreme até casa.
Hoje – disse-me ele – achava que grande parte da nossa felicidade estava no apaziguamento, ou no esquecimento, das memórias da infância. Apaziguar é difícil e carece de coragem – porque implica um confronto procurado, constante, um projecto de vida. Esquecer é impossível – porque envolve, na soberania da nossa vulnerabilidade, um confronto esporádico, de que se foge. A infância. Feliz? Infeliz? Ele hoje já não sabia dizer.
[E eu não disse nada – que poderia eu dizer?]

[Crónica publicada no JM, 06-VIII-2016, p. 2.]

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