sábado, 14 de maio de 2016

Crónica 48 [O Espectro]

Chegou a casa, já madrugada adentro, e atirou-se, abatido, sobre a cama. O quarto de dormir era parte de um pardieiro que tinha acabado de alugar. [Uma janela na cozinha era a única entrada de luz. Fora esta divisão e o quarto de banho, todo o espaço era forrado de uma alcatifa que seria, com certeza, um viveiro de luxo para ácaros.] Era a primeira noite que ali pernoitava. Deitou-se de costas e adormeceu logo.
Acordou com um peso sobre as pernas. Saltou da cama, entre a escuridão, e precipitou-se a acender a luz do quarto. [Não tinha luz na mesa de cabeceira. Não tinha mesa de cabeceira.] Procurou em redor, de olhar acabrunhado, mas nada viu. Vagueou pelo apartamento que ainda mal conhecia e nada encontrou. Encolheu os ombros.
Na segunda noite, deitou-se, menos brusco, e adormeceu a entoar uma música de Bruce Springsteen, “The Ghost of Tom Joad”. [Talvez fosse a versão de estúdio ou a tocada ao vivo com a participação de Tom Morello, guitarrista dos Rage Against the Machine. Fosse como fosse, cantava: «The highway is alive tonight / Where it’s headed everybody knows».] Voltou a despertar com uma pressão sobre os pés. Com a luz de imediato acesa, não encontrou nada que lhe desvendasse o sucedido. Isto, pensou ele, é bem estranho.
O dia de trabalho seguinte foi extenuante e, após uma longa viagem na via rápida – tão longa que, a certa altura, parecia-lhe que não sabia para onde ia –, deitou-se de borco na cama. Não conseguia esquecer as duas noites anteriores. Virou o rosto para a direita e conseguiu enfim fechar os olhos, lembrando-se da “Canção dos Borracheiros” que um dia ouviu ser cantada pelo avô, que era do Porto da Cruz. Tornou a acontecer: um peso sobre os tornozelos – o salto da cama. Dessa vez a sua perscrutação foi feita com olhos esgazeados.
Na quarta noite, novamente o mesmo peso, a mesma pressão exercida – com uma diferença. Foi tal a agitação que caiu da cama e bateu com o nariz no chão alcatifado. O espirro que se seguiu só lhe agudizou a dor.
Na quinta noite, não conseguiu dormir. Pensou na sua descrença – característica da sua geração –, na sua recusa de superstições, no seu desprezo por histórias com pendor sobrenatural. Mas nesse momento pensava em ir à bruxa, em pedir à tia velha para lhe fumigar a casa com alecrim, em solicitar auxílio a um padre. Fosse como fosse, pensava, tudo era, mais do que estranho, aterrador. Não dormiu. E portanto, para maior desconcerto, não sentiu, nessa noite, nada sobre as pernas.
Na sexta noite, por mais que cismasse e se atemorizasse, o cansaço de várias noites mal dormidas não lhe permitiu uma insónia. Adormeceu a pensar na vida que levava – a alienação pelo trabalho, a falta de tempo para a sua humanidade. Matutou ainda, por qualquer razão, na chuva constante e na lama que encontrou antes de entrar em casa. Como se não bastasse, pensou, além de tudo isto só lhe faltava agora um fantasma – um espectro.
Acordou na madrugada. A razão foi a mesma. Levantou-se, mais melancólico do que assustado. Notou, logo, umas pequenas pegadas na alcatifa e no chão da cozinha. E viu – um gato. Ou melhor, uma gata – que, afinal, entrando pela janela da cozinha, tinha vindo nessa e nas noites prévias buscar um pouco de calor, um módico de conforto.
Acabou por adoptar o felino – ou o felino adoptou-o a ele. [O que é que isso interessa?] O que lhe causava inquietação acabou por lhe conceder algum consolo. É assim, por vezes, a vida.
Pôde descansar, finalmente, na sétima noite.

[Crónica publicada no JM, 14-V-2016, p. 2.]

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