sábado, 25 de junho de 2016

Crónica 51 [O Choque]

Era uma velhota.
Todos os dias postava-se à saída da esquina onde estava, no coração da cidade, o seu pardieiro a ameaçar ruína. Ficava, da manhã até à tardinha, de um jeito assim menineiro, como as crianças quando se escondem em brincadeira – por detrás de uma árvore, de um muro, na dobra da esquina, com a cabeça e parte do corpo a descoberto.
Tinha um sorriso que se diria de criança, também, expectante do que viesse a surgir na rua principal. Ia olhando, ora para a esquerda, ora para a direita. Não tinha vizinhos – na medida em que, na cidade, já não há vizinhos. Para ela olhavam os transeuntes e os moradores ao perto, mas era ela invisível e invisíveis eram eles.
O sorriso é que nunca dava tréguas, apesar dos andrajos que apresentavam, aqui e ali, nódoas e manchas de terra. As pessoas passavam mais ao largo quando a viam – não tanto pelas roupas e guedelha desgrenhada, mas pela cara aberta, como um sintoma de demência, como um silêncio que desarma.
Às vezes um ou outro passante, igualmente de idade provecta – como é óbvio –, dirigia-lhe uma ou outra palavra. Não respondia a velhota, nada dizia. Mas a uma pergunta respondeu, numa tarde. “‘Tá à espera de quem, senhora?” “‘Tou à espera da minha riqueza.”
Quer dizer, à espera do filho – o único filho que teve, emigrado há 40 anos, que nunca mandou notícias ou proventos. A espera e a saudade foram, no início, acompanhados de raiva estupefacta – isto é, da razão –, numa casa onde, sozinha, roía a velhota a fome e a privação. Hoje, havia saudade mas não a raiva – nem a razão.
Era uma adolescente.
Vivia, com a mãe, num T1 + 1, no 3.º andar do prédio que ficava defronte da esquina. O pai, de quem guardava boas lembranças, havia falecido há meia década. Amiúde, virava-se ele para a filha gorducha – ainda hoje ela era gorducha – e dizia: “Vem cá, minha batatinha inglesa!” E ria-se alto, perante a cara de indignação da menina, antes de arrematar: “Ah, minha riqueza.”
Era uma adolescente normal – numa idade onde não há normalidade. Detestava o seu corpo, aborrecia-lhe metade dos colegas da turma, tinha boas notas – que alcançava com enfado e recebia com ainda maior enfado –, trajava de cores fúnebres e na rua andava sempre de auscultadores nos ouvidos e olhos pregados no ecrã do telemóvel.
Não gostava muito da mãe, mulher deveras preocupada com as novelas e que não cumprimentava os vizinhos do prédio. Também a filha não cumprimentava. Ninguém cumprimentava ninguém – ninguém via ninguém.
A mãe dizia-lhe para deixar de ser tão séria e, sobretudo, para não andar constantemente com o nariz metido no telemóvel – o que, em boa verdade, era injusto. Quando não estava a trabalhar ou a ver novelas, também a mãe, dada qualquer oportunidade, não largava o aparelho. Ainda mais injusto era – afinal, a adolescente não consumia, no telemóvel, através das redes sociais, o tempo todo a enganar a solidão. Ao invés, lia, em formato digital, literatura oitocentista – um Camilo, por vezes, e autores ingleses românticos.
Ontem – se não me falha a memória, penso que foi ontem – andava na rua a adolescente, como habitual, com os olhos no ecrã do telemóvel. Aproximou-se da saída da esquina onde, como habitual, estava a velhota, que olhava para o lado contrário. Nenhuma delas deu conta da outra.
A velhota e a adolescente chocaram entre si.

[Crónica publicada no JM, 25-VI-2016, p. 2.]

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