segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Crónica 60 [A Tertúlia]

Sempre que passo, de carro sobretudo, ali estão eles – sentados sob a copa da acácia, na berma da estrada, num lugar padrão do Funchal suburbano.
À falta de melhor palavra, posso dizer que compõem uma tertúlia. São homens, desocupados, alcoólicos – em cima do muro onde se sentam há quase sempre vinho tinto de pacote, do mais barato possível. [É curioso – são filhos de um Baco incompetente e bêbedo que só faz e bebe zurrapas, mas ficam assim sentados, de perna cruzada, com um ar de dignidade cerimonial. Um dia, um dos homens foi ao supermercado das redondezas – há um supermercado próximo, demasiado próximo para o bem deles – comprar um pacote de vinho e dois ou três papos-secos. As moedas miúdas e pretas que levava não eram suficientes. A funcionária do supermercado julgou que ele iria optar pelo pão. Não – com a costumada dignidade, o homem disse que deixaria o pão e que levaria, sim, o vinho.]
O núcleo duro deste grupo é composto por três homens. Na verdade, melhor será dizer que é composto por um homem. Os outros podem, provisoriamente, não comparecer – mas ele lá está, dia sim, dia sim senhor. [Lembro-me dele de há muitos anos, quando eu trabalhava nas obras durante as férias da universidade. Já nessa antiguidade ora ele vinha trabalhar, ora não se lhe tinha dado para isso. Explicaram-me na altura que dependia do que ele já havia emborcado antes de o patrão o apanhar, às 07:40, na berma do caminho.] Era magriço e todas as manhãs lacrimejava abundantemente. A pele era vermelhaça – tinta, na verdade –, como se ganhasse, por osmose, a cor do líquido que bebia com perseverança.
Outro participante tinha sofrido uma trombose que lhe afundara o lado esquerdo da cara. Por vezes, esta carne facial fendia – e ele bebia, dizendo que o vinho curava tudo.
O terceiro homem, de pele amarela, de dentes amarelos, de olhos amarelos, passava de vez em quando, contrariado e sem aviso aos colegas, uma estadia no Trapiche. Enfim, mais dia, menos dia, ele voltava.
Fora o trio, acontecia que outros homens – bêbados ou não, a maior parte das vezes não – iam passando, estacavam, sentavam-se e demoravam-se.
Não me parece surgir ali a violência que o álcool faz transpirar. [Pode ser difícil de acreditar, mas é verdade.] Os diálogos decorrem amenos, sobre tudo o que vem à mente. Se é para passar o tempo, há que enchê-lo de palavras, debruçadas sobre tudo – sobre nada. Emergem, claro, a par e passo, alguns comentários galhardos, uns chistes sem acrimónia, no seio desta tertúlia e entre ela e alguns passantes.
Numa tarde, um conhecido passou do outro lado da rua e mandou uma boca qualquer. Um dos tertulianos mostrou os dentes apagados e gritou: “Vê lá com’é que t’assoas!” O interlocutor riu e continuou a andar. [Por acaso, a uns vinte metros dali, um velho limpava o nariz com um lenço pardo. Ouviu, interrompeu o ronco e virou a cabeça para quem tinha berrado. Percebeu que não era com ele – afinal, pensou, aqueles homens nunca tinham feito mal a ninguém – e terminou o serviço, deixando um traço luzidio na pele glabra sob o nariz.]
Podemos imaginar alguém que chegasse a esta tertúlia e que perguntasse a estes homens: “Porquê aquela vida?” – “Por que não procurar tratamento?” – “A que lugar quereriam chegar, daquele jeito?” Se estes homens quisessem – ou soubessem – responder, diriam porventura que estas perguntas estão mal feitas. Ou, enfim, encolheriam os ombros e não diriam nada.

[Crónica publicada no JM, 01-X-2016, p. 2.]

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