sábado, 17 de setembro de 2016

Crónica 59 [A Noite]

Na cidade crescia a noite.
Um homem segurava contra a cara uma máquina fotográfica digital. [Estava há vários minutos de vigia.] No momento certo premiu o botão e fixou, dentro da memória da máquina, a fina orla incandescente que o sol derradeiro riscou no horizonte. [Poderia ser, esta orla, uma espada que um ferreiro intemporal batia e moldava até se tornar negra.] Retirou a lente dos olhos, baixou o aparelho – dir-se-ia que era, afinal, um binóculo –, esqueceu de pronto o que fixara e olhou na direcção da esplanada. [É assim este tempo – de olhos com filtros e memórias digitais.] Coçou um braço e cuspiu no chão. Afastou-se.
Estava completa a noite.
Numa mesa da esplanada um grupo de quatro velhos jogava às cartas. Um deles arremessou com rudeza uma carta contra a mesa de plástico e a carta deslizou veloz e caiu ao chão. Os outros olharam com reprovação para esta violação de uma norma não escrita do jogo. O funcionário da esplanada perguntou a este grupo se era preciso mais alguma coisa – mais um café, uma cerveja. Absorvidos – ou ignorando, apenas, esta interpelação –, nenhum dos velhos respondeu. O funcionário não insistiu e olhou com melancolia para a estrada, a ver se esta lhe devolvia mais clientes.
Dois homens chegaram, encostaram as barrigas ao balcão e aqui pousaram os cotovelos. Um deles contou acerca de uma altercação, de uma zaragata numa noite anterior – que ele tinha falado com um tipo que lhe devia duas ou três dezenas de euros, que o tipo havia dito que não se lembrava, que ele ameaçou que o faria cuspir em sangue o dinheiro, que o tipo havia perguntado se essa ameaça seria cumprida por um só homem ou por uma camarilha completa. Que, enfim, a ele lhe tinham subido os bofes. [De maxilar inferior saliente, fez um gesto ascendente, com a mão esquerda arqueada, desde o ventre até à garganta.] E que tinha largado uma batata nas ventas do tipo, arrancando-lhe uma golfada de sangue. [Ouvem-se muitas palavras desta estirpe nas noites deste Funchal – e são quase todas mentirosas. Se não o fossem, uma parcela demasiado grande dos funchalenses encararia o dia seguinte com talhos e nódoas na cara. Mas nunca vi tal coisa.]
Numa mesa, um homem corpulento – um gordo –, com ligeiro estrabismo, careca e barbudo, dedilhava com fúria o teclado de um portátil. [Escrevia e depois contava as palavras. Escrevia e contava. A noite não estava quente mas havia gotas de suor na testa e na careca deste homem.] Pediu um uísque com uma pedra de gelo. Olhou para uma mesa onde estavam um homem e uma mulher.
A mulher olhava para o homem, a reclamar algo – uma atenção, uma palavra, alguma coisa que pulverizasse o silêncio. O homem tinha o focinho metido na luz do ecrã do telemóvel. Havia nesta mulher uma tristeza de quem demorava o olhar sobre as coisas e as pessoas – de quem, após a demora, mudava os olhos com um vagar quase suspenso. Eram dela – e de tantos outros – uns olhos que fixam um ponto, não na lonjura, mas num espaço vazio cerca, por vezes a poucos palmos da cara. Era uma tristeza de lábios afundados – que já não conhece o soslaio, a sobrancelha levantada, a fronte enrugada do riso.
À noite, é assim este Funchal urbano e suburbano, este Funchal dormitório – antecâmara da urbe, antecâmara da vida. Como o vejo, é feito de fúria rangida e melancolia perplexa, de ecrãs luminosos e tempo raso, de cansaço e sonhos suspensos, de vida fermentada em álcool e em espera.

[Crónica publicada no JM, 17-IX-2016, p. 2.]

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