terça-feira, 20 de novembro de 2012

Crónica 16

Galguei a fronteira dos 30 anos e é esta a minha vida.
Quando fenecem as tardes, ou emergem as noites [na verdade, não há diferença; já não distingo crepúsculos], vou sentar-me a um balcão de uma tasca qualquer. Todos os dias – todas as noites. Só saio depois de…
Não virá ao caso [tudo e nada se justificam, quando embriagado], mas lembro-me do terror quando um bêbedo galgava, cambaleante, o caminho de acesso à casa. Algo aconteceria, de certo.
Uma vez, possesso, partiu a loiça da cozinha.
Não fui eu. Acho que não fui eu. Estou só. Fui eu ou um antepassado – não sei.
Ou não interessa. Tento escrever por vezes. Mas custa-me tanto – fico ferido e exaurido. Uma dia contarei os haustos.
Ontem [penso que foi ontem; ou hoje; não há muito tempo, pelo menos], ontem, dizia, entrei em casa e sentei-me à secretária do quarto. Estou só – penso que já o disse. Mais só estaria se tivesse companhia. Uma música reproduzia-se no computador – «Room a Thousand Years Wide» [Soundgarden]. Um quarto: uma Ilha de mil anos de tamanho – mil anos de permanência.
A meu lado [neste momento até pestanejar me custa; custa-me tanto] está uma separata ou um opúsculo. De vista turva, faço por fixar alguns caracteres negros.
«Na literatura insular são perceptíveis dois retratos humanos que traduzem especificidades da psicologia colectiva – e da sociologia – dos madeirenses.»
Mais adiante: «Constituem um par de categorias antropológicas que demonstram maneiras dissemelhantes de lidar com o meio insular: a Mulher Fugitiva; e o Homem Bêbedo
Sobre a minha testa, uma estante com livros. Prendi, sem levantar demasiado a cara [as pupilas coladas às sobrancelhas], a atenção nas lombadas. Respiro ofegante e gutural. Faço uma estimativa – mil haustos por noite. Viro então uma página sem olhar para baixo. Volto a ler.
«Contrariamente à Mulher Fugitiva, a atitude do Homem Bêbedo nada apresenta de fecundo. Os anos rodam e todo o percurso de vida esgota-se num gradual alheamento e numa completa esterilidade. A reacção da Mulher Fugitiva ao tamanho exíguo – seja em termos geográficos, seja, se quisermos, em termos mentais – da Casa Insular materializa-se numa evasão para o exterior – pleno de esperança. O Homem Bêbedo, ao invés, reage esvaindo-se no interior – eivado de animalidade e de violência.»
Calquei, cambaleante, a orla dos 30 anos. E é esta a minha vida – a minha clausura – a minha permanência.

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