sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Crónica 13

«Hoje é um bom dia para morrer.»
Ouviu um eco mudo quando corria e dobrava a curva da estrada. No fim estava a casa, a sua casa, rodeada de chamas. Um passo mais era mais um átomo de ansiedade que a respiração arfante repelia. A casa era circundada de árvores – figueiras, nogueiras e uma borracheira. Entre as chamas e as paredes da casa, o perigo.
A presença deles era anunciada por silvos que dividiam o ar e as labaredas. Fez um esforço para se recordar do que ia salvar. Parou, as pernas flectidas, curvado com ambas as mãos nos joelhos. Lembrou-se.
Entrou em casa. Entreviu corpos que deixavam um rasto negro como fumo, que se dissipava perante os seus olhos. Uns sibilavam, rasos de insídia – outros não. Esqueceu-se. A cara – o discernimento – protegidos pelo braço direito curvado; a mão esquerda na parede. Voltou a recordar.
Entre os rostos vislumbrados, não encontrava – não distinguia – os dos seus. De novo o olvido. De imediato a lembrança, cada vez mais ténue. Tudo o que tinha foi vencido e perdeu a identidade. E ele estava sitiado – dentro das suas próprias muralhas.
Sentiu, finalmente, a sua verdadeira melancolia – uma melancolia sem razão e sem sentido, que sempre conheceu e que sempre esqueceu. O fogo começava a entrosar-se com as traves, os móveis, o soalho. Tinha de trilhar o caminho de volta, pensou, quando ecoou de novo: «Hoje é um bom dia para morrer.»
Saiu da casa. Vislumbrou ainda os mesmos rostos e os mesmos miasmas negros saturados de perversidade. Antes de percorrer célere a estrada sentiu a borracheira que outrora ameaçou fracturar as muralhas do seu lar. Agora não importava.
No caminho, afinal, acompanhou-o – e ao fogo que alastrava –, o verdadeiro perigo que lhe invadiu a respiração: as memórias e os esquecimentos do quotidiano – o quotidiano raso de contentamentos insidiosos.
Entes a ganhar vida descarnada ficaram prestes a abocanhá-lo. E um véu negro desceu sobre a curva da estrada.

Uma vez acordou um homem, agonizante, de um pesadelo num quarto de espelhos. Os espelhos replicaram até ao infinito os despertares.
[Ontem foi dia de Todos-os-Santos e eu fui encomendado desde sempre a todos os santos. Hoje é dia de Finados. Esta é a crónica número 13. E hoje é um bom dia para despertar.]

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