segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Crónica 15

Na literatura colhem-se dois retratos humanos que, em certa medida, traduzem idiossincrasias da psicologia colectiva – e da sociologia – madeirenses. Constituem, com efeito, um par de categorias antropológicas que demonstram maneiras dissemelhantes de lidar com o meio insular. Estes retratos são: a Mulher Fugitiva; o Homem Bêbedo – ou o homem refugiado em vícios.
Vejamos o primeiro.
A Mulher – ou, com alguma propriedade, a Rapariga; na realidade, não obstante raras excepções, é a mulher jovem o conteúdo de um mais elevado número de referências literárias – Fugitiva é aquela que: se evade – foge, na verdade –, sem aviso prévio, do seu domicílio; é motivada pelas promessas de amor e casamento e de uma vida melhor fora do arquipélago; reage deste modo às clausuras geográfica e – de maior relevância – social, cultural e mental do meio insular.
As esperanças de uma outra vida são, sabemo-lo, gravemente goradas na maior parte das vezes; todavia, estas esperanças, e sobretudo a evasão correspondente, emergem de uma atitude fecunda, mais fecunda do que a que encontramos na categoria masculina mencionada – atitude, afinal, feminina.
Referências literárias a esta figura – e ao fenómeno de fuga conexo – podem ser encontradas, por exemplo, nos romances de Horácio Bento de Gouveia.
Uma expressão idiomática regional – todos a conhecemos – demonstra a presença inconsciente de ambos – da figura e do fenómeno – no imaginário colectivo da nossa sociedade: quanto alguém é inquirido insistentemente quanto ao paradeiro de fulana de tal – sempre uma parente –, acaba por exclamar: «Fugiu p'ra casar!» Podemos neste ensejo questionar se o amor foi a razão primaz para a fuga ou, antes, o pretexto.
Esta figura existirá com certeza noutros espaços geográficos também circunscritos – insulares e não insulares. Porém, se uma análise comparativa faria um melhor entendimento, neste particular também dilataria desmesuravelmente o esforço cognitivo.
[O dia tinha sido longo para este professor. No caminho para casa, atormentava-o a incompetência de não lograr o forjar dos conceitos com os moldes convencionais das ciências sociais. Mulher Fugitiva. «Que merda de conceito é este? As palavras do senso comum não fazem ciência», ruminava. Os alunos pouco se importariam – os seus pares, ao invés, não.
Ao fechar atrás de si a porta pressentiu, de imediato, uma ausência. O odor estava mais frio. Os artefactos da mulher que com ele vivia despareceram na totalidade – de todas as divisões.
Lembrou-se, então, da última vez que a viu: a expressão esfíngica – porventura com um esfumado tom de desdém, mas quem poderá saber? –, sentada no parapeito da varanda, com o primeiro cigarro matinal desse dia.]

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