sábado, 9 de janeiro de 2016

Crónica 38 [A Elite]

No meu 9.º ano de escolaridade, com década e meia de idade, trabalhava eu, terminadas as aulas, no bar do meu pai. Ia ajudá-lo e render o meu irmão.
Um dia entrou no bar um cliente habitual, à beira dos 60 anos, de calças de sarja, casaco de Verão e sapatos de vela – todo este trajar, pareceu-me na altura, também roçava os 60 anos. Ajeitou o lencinho enramado que lhe aconchegava a garganta, pousou o capacete em cima do balcão – tinha uma mota, uma “vespa”, que já acusava o passar do tempo, e na qual se arrastava com a mulher – e mandou vir uma imperial com groselha. Dei-lhe tremoços para “dentinho”. Deu um primeiro gole na imperial e pediu-me para encher o espaço deixado vazio no copo.
«Porquê? Que falta de respeito é essa? A cerveja que vais deitar agora é p’ra compensar a groselha que deitaste no fundo do copo. E aproveita – p’ra além dos tremoços, desmancha esse filete de espada e dá-me um bocado p’ra “dentinho” também.
[...]
«Qual é o teu clube?
[...]
«Então não dás grande atenção ao futebol? Mas tens de ter um clube!
[...]
«O quê? Credo, rapaz, esse clube não. Tu não sabes que esse clube é considerado o clube da ralé? O clube da elite, ah, o clube da elite, sabes qual é? É o [...]. [Não interessa especificar.] Por isso, se quiseres ter um clube, tens de escolher esse, como eu escolhi. Tens de pensar de outra forma.»
O meu interlocutor continuou a falar, não me lembro hoje sobre o quê. Sei que pediu, depois, meia bola de Bell's com bastante gelo e ainda mais “dentinho”. Eu pus-me a fazer contas de cabeça – contas ao lucro. Mas um cliente – sobretudo da elite – tem sempre razão. Entretanto, chegaram outros clientes da mesma espécie. Talvez mais nenhum fosse simpatizante de um determinado clube ou usasse lencinho ao pescoço, mas eram, declaradamente e com alarde, membros da elite.
O homem à beira dos 60 anos faleceu alguns anos depois. A mulher, que se sentava à mesa do bar, discreta, com outras mulheres de homens da elite, a beberricar café com leite [nunca muito escuro ou claro, nunca muito quente ou frio; enfim, dependia do dia e do humor], não me pareceu ter feito luto rigoroso – ou aliviado. Posteriormente recordo-me de vê-la “bem-posta” – e aliviada.
Outros clientes havia, pois, da mesma espécie. Um em particular, sempre muito pronto a nos ensinar o ofício de tasqueiro, sempre déspota e sôfrego em dizer que era da elite e em assumir comportamentos que, supostamente, o diferenciavam da “plebe” – tudo valia, na verdade, como por exemplo falar de um filme comercial como se encerrasse verdades e doutrinas absolutas, ou discutir política partidária de alcofa e intriga com a gravidade de quem tinha a solução para todos os problemas do mundo –, um cliente em particular, dizia eu, insultava-me quando eu não lhe respondia pronta e servilmente. Um cliente – sobretudo o da elite – tem, jamais nos esqueçamos, sempre razão. Anos depois, alguém me apresentou esse homem e perguntou-lhe se não me conhecia. Ele, que sabia que eu – o filho do tasqueiro – tinha entretanto estudado na universidade, disse, servilmente, de cabeça baixa e sorriso amarelo, que "Sim, claro" – que se lembrava do "Senhor Dr."

[Crónica publicada no JM, 09-I-2016, p. 2.]

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