sábado, 31 de outubro de 2015

Crónica 33 [Uma História]

[Disse-me o homem de mãos sujas e olhos azuis numa cara de pele tisnada, durante o intervalo do amanho de um pequeno bocado de terra.]
«Isto não dá nada, por agora vai dando, mas mais daqui a uns tempos não vai dar nada. Vai-se limpando, cavando, vai-se fazendo como se pode, mas agora também nem se pode usar remédio como dantes.»
[...]
«Sim, remédio. Eles vendem, mas já não é o remédio que antes havia, é mais fraco. O remédio que antes havia era bom, mas também era forte, e eles já não vendem.»
[...]
«Ora porquê? Porque as pessoas... As pessoas, depois, pegavam no remédio p’rós bichos... e tomavam...»
[...]
«Tomavam. P’ra se matarem. P’ra se darem caminho. Há uns tempos aconteceu com um primo meu, um bom bocado mais novo do que eu, mas aconteceu.
«Cheguei a casa e passei numa tasca que tem lá perto. Vi lá esse meu primo, que ‘tava lá. Ele perguntou-me se eu queria tomar alguma coisa. Eu mandei vir um copo de vinho. E depois ele disse-me: “O primo o que ‘tá a beber é a última coisa que bebe da minha mão”. E eu disse-lhe: “Ah, homem, não tem problema nenhum. Eu ainda ganho p’ra pagar um café ou um copo de vinho p’ra mim.”
«Isto passou-se. Daí a bocado, na casa dele, começou a haver uma gritaria, uma gritaria. O que foi que tinha acontecido? Tinha tomado remédio, e ficou ali mesmo. Encontraram ele já com espuma na boca, a estrebuchar no chão. Olhe, é assim, percebe?
«A mulher contou-me depois que ele tinha ido p’ra casa e que chamou ele p’ra jantar. Depois disse-me que a resposta dele foi: “Vocês que vão jantando que eu já ‘tou a arranjar jantar p’ra mim.” O jantar foi o remédio.»
[...]
«Sabe como é. O rapaz, esse meu primo, não tinha trabalho, vivia com a mulher e tinha uma filha pequena, um bebé, mas vivia com a família da mulher. E sabe como é. Um diz isto, outro diz aquilo, um lava daqui, outro torce dali. Depois há muita bilhardice, e as pessoas não se compreendem. Os pais dela, da mulher, mandavam vir com ele. A mulher tomava o partido da mãe e do pai dela. Não havia paz. Sabe como é. As pessoas quando não têm trabalho, não têm dinheiro, não têm a sua casa... ninguém se compreende.
«Isto ‘tá difícil por aí afora. A quantidade de gente que... O senhor sabe lá o que vai por aí afora por essas zonas. Há dias um homem que eu conheço foi regar uma fazenda, longe do caminho da levada. Olhe, ele encontrou outro que ‘tava lá pendurado há bastante tempo. Ele nem tinha dado com ele se não tivesse sentido o cheiro e não tivesse ido ver o que era.
«Eu cá também divorciei-me, sim. Mas uma pessoa tem de ter calma, tem de viver. A mim, graças a Deus, já tenho esta idade, mas não me falta trabalho. Graças a Deus, o meu patrão arranja sempre trabalho p’rá gente. Um dia aqui, outro dia acolá. Uma fazenda de bananeiras, um jardim... Ganha-se pouco, sim. Ganho o ordenado mínimo p’ra tanto trabalho. Mas um homem tem de viver. Fumo um cigarrinho de vez em quando...
[...]
«Olhe, obrigado. Fuma-se um de vez em quando. Às vezes toma-se um copinho de vinho, quando dá. Mas é preciso saber viver, é preciso largar a bilhardice, o falatório, todas essas coisas. Quanto mais se fala menos se faz, menos se vive.»

[Crónica publicada no JM, 31-X-2015, p. 2]

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