sábado, 14 de novembro de 2015

Crónica 34 [Três Histórias]

Contou-me ele. [Passou-se nos anos 70.]
«Vê só. Há alguns anos, quando eu era mais novo, eu tinha uma prima, perto de onde a gente morava... Bem, o meu tio, o pai dela, era um homem... Andava sempre com uma foice ao ombro – assim. Uma foice afiada – até cortava papel. Sim, uma foice. E ele era um estupor. Bem, se ele apanhasse um bicho – um gato, um cachorro – dentro de casa, nem imaginas. Uma vez, então, entra um gato dentro da casa desse meu tio. Ele chegou e reparou que ‘tava ali o gato. “Espera aí que eu já...” – deve ter ele pensado. Vai daí, não faz mais nada: pega na foice e... zás, a foice a zunir no ar, e apanha o gato – metade p’ra um lado e metade p’ró outro. O que é que ele faz depois? Não faz mais nada – chega ao pé da minha prima e diz-lhe: “Agora vai limpar.” Se tu visses... A rapariga – uma rapariguinha; era, como se diz hoje, uma adolescente –, lavada em lágrimas, a limpar o sangue e o debulho do bicho espalhados pela sala. Imagina o que não foi p’ra ela.»
Contou-me ela. [Passou-se nos anos 80.]
«Os meus avós eram muito unidos. Já eram velhinhos mas andavam sempre juntos. Apoiavam-se muito. A minha avó, repara, já não via bem. Ninguém daquela idade estava habituado a ir ao médico, mas a certa altura alguém leva a minha avó ao oftalmologista. Afinal, já praticamente ‘tava cega há anos. O médico receitou-lhe uns óculos e foi como se a mulher tivesse nascido de novo. Lá ‘tava ela toda contente com os seus novos olhos. Mas durou pouco. Logo que começou a usar óculos, o meu avô chega ao pé dela e disse-lhe: “Não gosto de te ver com isso. Tira isso da cara.” E ela tirou. Imaginas?»
Conto eu. [Passou-se nos anos 90.]
Venho do fim de um dia de trabalho na fazenda, com o meu tio. Pergunta ele: “Vai-se tomar um café?” Era eu ainda um adolescente, cheio de aspirações – aspirações de que hoje só guardo farrapos –, contente do cansaço de um dia de trabalho. Chegámos à tasca e vejo um homem, com a idade que hoje tenho, nos meados dos trintas. Este homem falava com um outro homem e tentava ser assertivo – mas mostrava nervosismo, apreensão e uma cólera reprimida. O outro homem era mais velho, talvez muito mais velho. O que lhe era dito era algo como isto: “O senhor não acha que podia mandar cortar aquela árvore? Quer dizer, eu sei que ‘tá no seu terreno, é por isso que eu ‘tou a falar consigo. Já viu se ela cai? Ela ‘tá perigando de cair. Já viu se ela cai em cima da minha casa? Imagine, senhor, se a árvore cai de noite e eu tenho a minha mulher e o meu filho em casa. Se cair e eles morrerem, como é?” Antes de dar uma resposta, que foi imediata, a expressão na cara do velho... Ainda hoje parece que a vejo. E ainda hoje – ou desde sempre – não a consigo descrever. Responde, enfim, o velho: “Se isso acontecer, eu tenho dinheiro p’ra pagar a morte.” Imaginam?
Não é preciso agredir, gritar, ameaçar, insultar com palavras simples e desonestas. Há violência – e há violências, na família e fora dela. Haja olhos e ouvidos: os olhos e os ouvidos certos para reparar na violência subterrânea, indizível, inescrutável – e para fazê-la soar, como sinos em cortejo fúnebre. Haja imaginação para reconhecer a violência – porque, para ela existir, basta existir poder.


[Crónica publicada no JM, 14-XI-2015, p. 2]

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