sábado, 17 de outubro de 2015

Crónica 32 [O Líder]

Passou ele a ler para a sua pequena plateia desconfiada.
«O líder, nesta sociedade, é o indivíduo a quem ninguém ousa criticar [ou maldizer] na presença – apenas na ausência. [Sim, o mesmo se aplica a um louco. E sim, quem fizer o contrário é considerado louco – ou leproso. Adiante.]
«Quando um indivíduo critica o líder na presença deste, é de pronto abandonado por aqueles que, até à véspera, o acompanhavam nas críticas ao líder ausente.
«Há indivíduos, que lideram, a quem, mesmo quando ausentes, dificilmente se admite uma crítica: isto acontece quando são vitoriosos e, logo, cobertos de uma aura de omnisciência e divindade – difícil nesta sociedade individualista, mas não impossível. Todo este jogo muda, como é óbvio, quando à vitória sucede a derrota.
«Depois, não o esqueçamos, há indivíduos que, não sendo chefes ainda, se apresentam – e são considerados – como líderes futuros, inevitáveis, messiânicos: também a crítica a estes é considerada uma heresia.
«O reconhecimento de um indivíduo como líder – no presente ou no futuro – é um processo composto de aprovações unânimes, tácitas e, por vezes, emocionais e inconscientes [quase silenciosas, portanto] – das quais o mínimo desvio é considerado um pecado. Estas aprovações, após a unção do líder, são por vezes seguidas de desaprovações desiludidas, unânimes, racionais e conscientes [quase silenciosas, porém] – das quais o mínimo alarde é uma grave transgressão. Este é um mundo onde as atitudes implícitas, vigiadas e eivadas de regras são mais poderosas do que as atitudes explícitas. Nenhuma plateia acredita em declarações gongóricas e golpes de teatro. Quando se trata do poder, toda a plateia sabe que o mais importante se passa nos bastidores.
«Como é óbvio, nesta sociedade não há coesão social mínima sem líderes – sem o reconhecimento de alguns homens enquanto líderes incontestados [ou – como temos visto – contestados de modo surdo]. Convém, a bem de uma maior coesão social, que a unção de um novo líder seja feita pelo anterior – enquanto este for forte ou vitorioso. Se tal não acontecer – e amiúde não acontece –, o sucessor, para bem do sistema, deve, como dissemos, se apresentar como um messias – e um messias é sempre incontestável [ou contestável somente de modo surdo].
«Isto dito, importa referir aqueles indivíduos que, ainda que presumivelmente talhados para liderar, nunca o farão. Mais do que as características inerentes, temos de ver as atitudes que um indivíduo desta natureza suscita nos outros. Se ao que será – ou é – líder ninguém ousa criticar na sua presença [somente na sua ausência, e em condições muito periclitantes], ao que nunca será líder, por assim dizer, sobejarão críticas ditas no seu rosto e encómios proferidos nas suas costas. E assim voltamos ao início.»
“Que tal?” – Disse ele, voltando-se para quem o ouvia.
“Arrevesado. Confuso.” – Disseram todos, com pequenas diferenças de palavras, num murmúrio gaguejante. Todos – menos um.
“E tu?”
“Qual foi aquele adjectivo que usaste?”
“Adjectivo? Não sei. Unânime? Tácito? Inconsciente? Consciente?”
“Sim, tudo muito lindo. Não, depois disso. De modo…”
“Surdo?”
“Isso. Também devias ter usado, aí pelo meio, a palavra «mudo».”

[Crónica publicada no JM, 17-X-2015, p. 2]

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