terça-feira, 23 de agosto de 2011

Crónica 4

O egocentrismo? Muito havia para dizer [ou para dizer-nos].
Começaria por defender que o número dos pecados mortais merecia ser actualizado; em vez de sete, oito, sendo o oitavo – contribuição máxima e paroxística dos nossos tempos – precisamente o egocentrismo [simultaneamente semente e síntese dos restantes].
Muito por onde escalpelizar, com efeito. Permiti-me apenas, por horror à página em branco e à tarefa de escrevinhar palavras forçadas, e porque sou bem locupletado de temores, apregoando-os aos sete ventos, permiti-me, dizia, abordar alguns fenómenos tocantes ao modo como os hominídeos estruturam o diálogo.
Em primeiro lugar, que acontece? Ninguém ouve ninguém. Verdadeiramente falando, ninguém escuta ninguém. Ao invés de diálogo – dois monólogos que nunca urdem uma mesma malha. O tempo ocupado pelo oxigénio tingido das palavras de um “parceiro” é, simplesmente, o tempo no qual o outro “companheiro” se entretém a forjar as suas próprias – e próximas – elocuções retóricas. Faz lembrar, considerações outras à parte, diálogos de crianças que começam a dar os primeiros passos no entrosamento e empatia sociais. E, nesse sentido, decadentista como sou, tenho de proclamar uma verdadeira involução civilizacional.
O diálogo não existe, portanto. A existir, ou seja, quando as palavras são ouvidas – e não apenas lábios a sacudir e a estalar –, não produzirão qualquer efeito no outro. De uma desatenção à forma, passamos a uma recusa do conteúdo. Tudo se centra em torno de nós. Porque eu senti a raiva; porque eu senti o afecto; porque eu é que tenho o medo; porque eu é que sofri; porque eu é que cumpri ou deixei de cumprir a porção – ínfima, na maior parte das vezes – da vivência.
Tu tens as tuas agruras; os teus amores; os teus sofrimentos; sem dúvida, os teus sucessos. Nada do que é teu suplanta – suplantará, jamais – o que é meu. A mera transmissão supérflua de experiência é apenas palco para que se transmita, de modo chão, as nossas incontornáveis experiências.
Desta nascente são vertidas no mundo asserções moralistas – sendo nós o centro do mundo, somos dele também a norma e o protótipo – e, quando não há o outro, também não há o concreto, o objectivo, o que é e permanece diferente.
Sobram categorias e abstracções facínoras.

1 comentário:

  1. Completamente de acordo em relação à crítica da comunicação e do diálogo. Mas é precisamente por essa banalização dos monólogos cruzados que os diálogos, quando de facto acontecem, são como uma dádiva. Um certo benefício da dúvida em relação à razão comunicacional do Jürgen Habermas (um marxista que deixou o Marx cheio de nódoas negras dentro da campa) talvez alentasse um pouco o espírito do cronista. Bem hajam as crónicas, cá fico à espera da sétima!

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