sábado, 5 de agosto de 2017

Crónica 81 [A Casa Vazia]

O velho abriu um livro – um policial, de Rex Stout – e preparou-se para passar as horas. Os últimos anos tinham sido deste feitio: acordar na casa vazia; televisão; almoço; passeio – agarrado à bengala, ou a bengala agarrada a ele –; um ou dois vinhos brancos; regresso; jantar; dois tostões de leitura; cama; alguns versos de Manuel António Pina – o único poeta que lia –; dormir.
Vários anos deste feitio. Nesse ano, porém, um vago parente – de uma ou duas gerações abaixo – ligou-lhe para casa e anunciou, com voz arrastada como a da lotaria na televisão, que havia um convívio familiar – e que, portanto, estava convidado. Ele ouviu, enfadado, pediu para repetir a informação e então decidiu: “‘Tá certo, meu filho. Obrigado. Venham-me buscar… Sim, pode ser a essa hora.”
Vestiu-se com aprumo, esperou na estrada, entrou no carro. Chegou à festa e conduziram-no a uma mesa, de onde não se levantou. Dali presenciou um desfile de vultos vagos, de aparições alvacentas, de gente indistinta que se debruçava para cumprimentá-lo. [A juventude – toda igual: pequenos e pequenas – passava-lhe ao largo, como se se desviassem da lepra.] À frente puseram-lhe água, um prato de arroz e frango assado, sobremesa, meia bola de digestivo. Uma mulher sentou-se ao lado e disse: “Tio, o que é que vai ser da sua casa depois de…” – e o velho, sorrindo, deixou os ouvidos ficarem surdos de ruído. Quando saiu, distinguiu apenas mais uma voz: “Aquele homem… deve ser cá uma solidão.” Ele deu por si a escavar dentro da palavra – solidão – e não encontrou nada. [Solidão; e memória – outra palavra que, para ele, também não tinha significado, também era uma casa vazia.]
No dia seguinte, o velho voltou à rotina. Com a lentidão que o tempo lhe ia dando de presente – e era um presente pesado, ainda que silencioso –, depois do almoço, aproximou-se da passadeira que ficava após a dobra do caminho. Se o semáforo dos peões mostrava – e apitava – vermelho ou verde, não se lembrava ele. [Não interessará agora ao caso, mas estava vermelho.] De modo que andou, pisou o asfalto que nesse momento lhe estava vedado, e um carro novinho em folha roçou o corpo escangalhado à altura da coxa. No chão, os olhos do velho apagaram.
Quando acenderam – confundidos pelo néon e pelas cores falecidas dos quadros aparafusados a granel nas paredes –, ele estava deitado numa cama. O acidente não tinha sido grave – disse-lhe uma enfermeira do hospital, que depois apertou os lábios. A verdadeira má notícia deu-a o médico: “Sim, não foi nada de mais. Mas quando fizemos exames descobrimos que o senhor tinha cancro.”
Cancro – disse ele para ele próprio, e suspirou de fastio, imaginando apenas que, desta vez sim, algum lugar lazarento das suas entranhas tinha dado de si. [Há algum tempo que vinha sentindo uma pressão no esterno; talvez tivesse começado aí].
Do hospital já não saiu. Dormente de analgésicos, sentiu chegar a última noite – e então lembrou-se de uma jovem mulher que lhe afastava a pura franja encaracolada da fronte. [A casa da memória encheu-se pela última vez]. E, antes de morrer, na casa perdida da solidão, pediu uma folha de papel e caneta e escreveu algumas palavras.
O parente que foi recolher os despojos do velho, no hospital, encontrou a folha. Olhou, apalermado, para as palavras, amarrotou o papel e deitou-o no balde do lixo.

[Crónica publicada no JM, 05-VIII-2017, p. 13.]

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