sábado, 22 de julho de 2017

Crónica 80 [A Escolha]

A estrada para casa estava fechada, ao princípio, numa única treva. A custo, os olhos das crianças, piscando por detrás dos estores da janela da sala, iam dissipando esta escuridão e destrinçando matizes. Ali viam o cinzento longínquo da iluminação pública; aqui o rasto efémero da sombra de um gato; naquele lado o fio de luz de um carro, que por pouco não usava o gato como calço; neste lado, ao pé do muro da casa, um vulto que crescia.
Crescia o vulto – primeiro via-se uma cabeça, depois os ombros angulares, neles os braços aparelhados e trôpegos a procurarem, porém, uma cadência certa; enfim, uma possante e lenta aparição. Vinha ele – e crescia o temor ofegante, na garganta embargada, das crianças.
A resfolegar como um porco, o vulto abriu a porta. Um odor peçonhento de álcool e suor inundou a casa como uma enxurrada. Ele olhou para a família com órbitas vazias e senis, mastigou duas ou três sílabas e foi para a cozinha. Algo que não estava de feição – o jantar frio, a despeito de estar num tupperware envolvido por uma toalha grossa; outro pretexto qualquer; não valerá, pois, a pena darmos mais corda à imaginação; o que tinha de acontecer haveria de acontecer –, algo, enfim, fez o homem saltar a barreira para o pântano da violência. A família, na sala, ouviu cerâmica a cortar o ar e a partir, metal a tinir, punhos contra madeira – um arraial de cacos, de berros, de colisões.
A seguir, caiu o silêncio. Para aquela noite, bastava.
Ele veio até à sala. A tristeza e o terror nos olhos da família fizeram-no estremecer. [Por momentos ficou paralisado como se uma faca lhe rasgasse as costas de um só golpe. Sentiu isto – mas ninguém se apercebeu. Sem cacos, berros, colisões, algo tinha desmoronado dentro dele – no lugar onde, nos últimos anos, ele só entrava se fosse guiado, de mão dada como uma criança confusa, pelo álcool.]
Decidiu que as noites assim bastavam. Trocou caminhos que desaguavam em tascas e patuscadas por trilhos que desembocavam em clínicas e na casa de um amigo. [Um amigo apenas, a quem disse que, do tempo anterior à dependência do álcool – antes do álcool lhe ter adormentado a realidade –, nada conseguia trazer à memória, nada parecia ter permanecido. O amigo respondeu-lhe que esse esquecimento poderia ser misericordioso – ou mortífero; e que ele teria de escolher.]
Passaram-se semanas. Um dia, louco do vício por aplacar, ele deitou uma garrafa de aguardente em peça numa taça branca, lançou com fúria as mãos em concha ao líquido e esfregou-o na cara. Algumas gotas encontraram um caminho livre entre as rugas precoces da pele e forçaram, na orla que separava os lábios, a entrada. Ele levantou a cabeça e cuspiu – cuspiu, o corpo todo sacudindo, como se quisesse expulsar um veneno que tivesse tomado o lugar da saliva, do sangue, de todos os fluidos corporais.
Depois, limpou as mãos e a cara com uma toalha branca – a toalha ficou encardida – e sentou-se pesadamente, no chão, com as costas demolidas de exaustão. Estava sozinho – não houve ali ninguém para servir de testemunha do que havia feito, mas ele agarrou na cara de jeito a que ninguém a visse, do jeito de quem queria desaparecer para sempre.
A filha mais pequena entrou, em silêncio [ele não se apercebeu], e pôs-lhe a mão na cabeça. Ele destapou a cara – e lembrou-se que não era a primeira vez que a menina o confortava desta maneira.

[Crónica publicada no JM, 22-VII-2017.]

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