segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Crónica 28

Falta o mínimo; e a quem nem esse pouco sobra, resta-lhe adormecer – pensou o homem que acabava de despertar.
Nunca será demais encarecer o valor das coisas indizíveis e invisíveis – cogitava ele, quando cuspiu para a pia.
Não sei se a casa é um manicómio ou uma prisão [uma câmara frigorífica ou um forno], ou se esta porta é uma fronteira aquém ou além da sanidade – disse ele, a lutar, pela sexta vez, com a fechadura perra.
A beleza terrífica do que se extingue – concordou ele depois de olhar um ninho abandonado e antes de tropeçar e cair de nariz no asfalto.
O sono ainda não tinha esvaído por completo; o sono nunca se esvai. Ao estacionar a um balcão, pediu uma bica curta; serviram-lhe uma bica cheia – havia pedido bica curta, esclareceu ele; que tomasse o que quisesse, esclareceram. [Tomasse o que quisesse – de café ou de vigília.]
[…]

O esquecimento pode ser uma benção – ou uma maldição [é igual – não interessa]; entre o trilho de ida e o trilho de volta, o que existe mais? – perguntou ele, antes de chegar ao destino, depois de abandonar o destino [é igual – não interessa].

[…]
Em quem confiaríamos? Nos homens que precisam de adormentadores da consciência – da realidade? Nos homens para quem a consciência e a realidade estão sempre de boa saúde? – considerou ele estas perguntas e pediu meia bola de uísque, logo a transpor a porta da tasca; foi-lhe servido o equivalente a uma bola; achou que era generosidade do taberneiro; ao pagar, exigiram-lhe o dinheiro de uma medida – havia pedido meia bola, esclareceu; que tinha sido servida uma bola, disseram-lhe. [Tomasse o que quisesse – de uísque ou de realidade.]
Que fazem de um homem? Quem sou eu? Um bobo amarelado – um ogre arreganhado – um bonifrate de ossos. O quê? – pensou quando uma criança atenta ao seu vulto, sobre o tratuário, virou a cabeça cúmplice para a mãe; e depois, quando um cão distraído que deu pela sua passagem – um faro apurado, num silêncio mais apurado – principiou a ladrar com ameaça.
O quarto é um cubo oco; dos quatro cantos superiores, um é iluminado pelo candeeiro, outro habitado por uma aranha; nenhum ponto de fuga existe – apercebeu-se ele antes de apagar a luz e derrubar um livro que estava sobre a mesa-de-cabeceira.

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