sábado, 9 de dezembro de 2017

Crónica 90 [Reencontro]

A mulher jovem ouviu a chuva miudinha cair sobre o colmo – um reencontro após poucos dias. Ela foi até o umbral, viu o pó do terreiro afogar-se, lento, na água, aconchegou o abafo e voltou para dentro.
Saiu à porta logo depois, de cabeça descoberta, desimportada da chuva. Virou a esquina da casa, estremeceu os ombros de frio, e começou a subir a vereda lamacenta. Ia descalça.
No corpo o orvalho ia-lhe pousando – àquela luz da manhã peneirada por uma malha de névoa, parecia que lhe cresciam pérolas brilhantes no rosto e nos cabelos. A bebé que levava nos braços – uma pequenina larva, dir-se-ia, comprimida como um casulo no melhor pano de linho que havia – contraía as pálpebras e as bochechas tenras ao toque das gotículas que caíam.
Ela calcou a fofa terra de um poio, no alto, e parou. De olhos – e lábios – deitados a um fundo precipício, olhou a bebé e apertou-a contra si – corpinho contra peito, carinha contra cara e ombro. Ajoelhou-se e aconchegou o recém-nascido dentro de um rego entre camalhões. Levantou-se, foi até o poço que ficava próximo do bardo e olhou para o fundo. Naquele momento, a água enfeitada de auréolas irrequietas furtou-lhe um último reconhecimento. Não importava – sabia que era dormência, dor pasmada, cabeça vazia de cismar; fora isso, ela não era nada, não reconhecia consolo, não se reconhecia.
Deixou-se cair ao poço.
A bebé acabou por abrir os olhos de avelã – que se esquivavam, o melhor que podiam, à chuva. Depois, um pequeno cão – uma cadelinha velha –, de quadris escalvados de sarna e faro experimentado, achegou-se. Cheirou o tubinho amortalhado de carne humana quente que estava na terra, virou a cabeça e deitou-se ao seu lado. Quando a bebé começou a chorar, a cadela lambeu-lhe a testa e as fontes.
Um outro cão – um canzana imundo, faminto – rondou, de faro confundido pela chuva, e arreganhou todos os dentes. A cadela rosnou – e bastou pôr-se sobre as patas para que o outro cão escondesse os caninos e fosse embora com um ganido submergido.
Oitenta anos depois, uma avó falava à neta. Ainda que sabendo das histórias que sempre correram na família e na terra, falava-lhe da sua origem, da sua agrura primordial, da sua mãe desaparecida.
«É verdade, filha, foi assim. [A neta contraía as pálpebras para que as lágrimas não corressem.] Não tem mal, filha. A vida é como é. Eu fiz o que pude – crescendo sem mãe. As pessoas contavam – contaram-me de como foi. Sei que foi num poço – e depois as pessoas falaram de um cachorro que estava ao pé de mim quando o meu pai me encontrou. A minha mãe... – como é que se diz hoje? Deve ter tido uma depressão – uma depressão depois do parto. Ninguém deve ter compreendido. Sabes como é, naquele tempo, a minha mãe teve-me sozinha, agachada no palheiro, sem nada, sem ajuda, sem cuidados… Aquilo era uma miséria. E logo no dia a seguir era preciso fazer a vida, andar na fazenda. A dor tomou conta dela – e ela não sabia dizer, e ninguém ia saber ouvir. Coitada da minha mãe… Não importa, filha, não chores. Eu fui – eu penso – boa filha para o meu pai, boa mulher para o teu avô, boa mãe, boa avó. [A neta soluçou.] Eu criei uma família de gente boa. Eu estou orgulhosa. Agora, só peço a Nosso Senhor que me leve – eu estou cansada, filha, Nosso Senhor que me leve. Eu penso que fui uma pessoa recta. Acho que mereço o céu. Eu só quero, depois de morrer, dar um abraço e um beijinho à minha mãe.»

[Crónica publicada no JM, 09-XII-2017, p. 15.]

Sem comentários:

Enviar um comentário