sábado, 14 de outubro de 2017

Crónica 86 [Pela Madeira Adentro]

Numa esplanada um homem, de nariz atacado de rubor, tira um gole de uma garrafa de cerveja. Há muitos desta igualha, pela Ilha adentro, naufragados em terra – com um copo ou uma garrafa como âncoras. São homens desocupados, ou em intervalos de tempo, de pele carbonizada, de frases decepadas e berradas, de andrajos ao deus-dará. São homens perros oleando-se com álcool. [Esta frase, diga-se, é inspirada no poema “Homens que são como lugares mal situados”, de Daniel Faria.]
Reparamos em mulheres de outra estirpe – andarilhas nos caminhos, pressurosas nos trabalhos, risonhas e falastronas nos snack-bars, a contar o dinheiro para o café e para as compras, com outro sentido sobre as coisas e sobre os dias.
É uma Ilha em duas ilhas – uma Ilha dividida por sexos.
Num restaurante, um gato preto e branco aproxima-se das mesas. Vai lento, insinuante. Está doente – assim vemos os olhos remelosos e pesados. Quer estar entre os humanos, entre as suas pernas, sob o toque de talheres em pratos. As pessoas enxotam-no; ele esquiva-se; ele retorna. Ao lado de uma mesa, o gato senta-se e espirra; ouve-se uma pieira saída das narinas felinas.
As primeiras ondas, na maré baixa, de uma praia de calhaus e areia preta, estão sulcadas de aprendizes de desportos marítimos. A um homem estranho à aprendizagem – um intruso em águas ocupadas – um dos instrutores avisa: “Aí há corrente.” Ele ufana-se e diz, de si para si, que ali foi a banhos a sua ascendência – e que a ele ninguém diz ou avisa sobre os perigos dessas águas. A verdade, porém, é que suou para sair do mar – as ondas subiam para a areia; mas por debaixo das ondas a corrente arrastava-o para o oceano. Quando pisou basalto seco, acendeu um cigarro e pôs-se a pensar. [Lembrou-se que aquela praia já teve a fama, segundo os antigos, de ceifar incautos e aventurosos.]
A praia está suja – há tocos queimados e plásticos descolorados, farpas de canas e folhagens esventradas, beatas sobreviventes e pontas de ferro zarcãs de ferrugem. Assim está a praia – e assim estão também outras pequenas praias e falésias, baldios, adros de igrejas, bermas de estradas. Há mãos despreocupadas e aleivosas na forma como se tratam os apêndices – os despojos – da natureza e da civilização.
Pela Madeira adentro há ruínas: palheiros, solares, engenhos; casas de pedra aparelhada – com lintéis ajoujados e ocas de tecto a receber o sol, as lagartixas, os ratos, o lixo, o silvado. Por vezes, ao lado destas paredes onde homens outrora respiraram, levantam-se mastodontes angulosos de blocos e cimento com demãos garridas – já traídos pela humidade e pela passagem de um tempo rápido e sem memória.
Há vilas a viver, durante a semana útil, sob o ritmo cardíaco dos transportes e dos pés dos turistas. Há restaurantes onde se ouve o frigir do peixe-espada, de outro pescado, de carne vermelha para pregos. Os turistas chegam, fotografam, mergulham, comem, falam nas suas línguas, gesticulam, põem-se ao sol, pagam, vão-se embora.
Com olhos nómadas, motor rasante e pena descuidada na escolha das palavras, estas paisagens foram recolhidas em vilegiatura. Percorremos a Madeira rural no final da liturgia eleitoral, eivada de imagens de gente sorridente, e nos dias seguintes, quando a Ilha voltou, cansada, ao normal.
Por que caminhos vais, minha terra? Qual é o teu destino?

[Crónica publicada no JM, 14-X-2017, p. 15.]

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