sábado, 2 de setembro de 2017

Crónica 83 [Pais e Filhos]

A mesa era pequena – e as bases dos copos de imperial molhavam o plástico encardido. A dois cigarros, tirados de um maço de ‘King Size’ [‘Rothmans’], deu-lhes a ignição o mesmo isqueiro. O meu pai, quando sentado, acabava sempre por ficar debruçado sobre a mesa – as costas num declive de vale escorregadio, o cotovelo pousado em ângulo fechado, a mão esquerda que desaparecia sob o cabelo preto, da testa à nuca. [Já me disseram que eu, por mais que tente endireitar as arcas, acabo por ficar na mesma posição – até a mão penteando o cabelo mais ralo.]
Contou o meu pai: «Uma vez, o pai tinha cinco anos, mais ou menos, ia mais teu avô [um homem enfezado, de alcunha o ‘Cachimbo’] numa vereda, lá dentro, no Porto da Cruz.
«Aparece um gajo na vereda e pede a teu avô um cigarro – “Oh Cachimbo velho, dá-me um cigarro!” Teu avô disse que não tinha, ‘tás a ver, era uma miséria, não havia dinheiro p’ra nada. Olha, o estupor não faz mais nada – larga uma bolachada em teu avô. Ele virou de cangalhas, caiu p’ra lá, ficou a sangrar.
«Eu era pequeno, comecei a chorar, mas fiquei ali, não larguei a mão de teu avô [e mostrou o punho em sinal de firmeza – uma mão tenra a amparar uma mão madura]. Olha, a gente sai dali, chega a casa, tua avó [uma mulher esguia, de apelido a ‘Cachimba’] arranja lá umas coisas quaisquer p’ra tratar de teu avô, umas ervas, p’ra parar o sangue.
«Bem, isto passou-se.
«Eu nunca me esqueci. Anos depois, venho de Angola, o sangue a ferver [apontou com o indicador da mão direita para a própria cabeça] daquela coisa toda, e um dia vou ao Porto da Cruz. Entro numa tasca da vila e quem é que eu vejo? – Ele. Eu disse p’ra mim – “Nem é tarde nem é cedo, é agora.” Cheguei ao pé dele e disse – “O senhor não se lembra há uns anos, assim assim, o que fez?” Ele olhou p’ra mim, começou a frisar os olhos e fez-se de desentendido. Eu não deixei ficar. Voltei a perguntar. Ele disse – “Ah, isso eram outros tempos.” E eu – “Ah, eram outros tempos?” Olha, vai dali, não fiz mais nada, puxei a mão atrás [falava com narinas e sílabas cheias – e levantou e fez recuar o punho direito, como se uma flecha fosse engatada num arco até ao limite da tensão da corda]. Larguei-lhe uma batata, duas, mais até. Foi uma zaragata e o diabo. Vieram os outros clientes, gente da vila, veio a família toda por aí abaixo – todos p’ra meter calma. Calma, o quê? Eu disse a eles – “Vocês não sabem o que ele fez.”
«O filho dele, que era da minha idade, veio logo falar comigo. Perguntou se eu achava certo. E eu disse – “E achas certo o que ele fez há uns anos? Mas olha, se quiseres continuar, por mim não há problema”. E ele ficou assim, não houve mais nada.»
A máquina da memória é insondável – tanto nos esquecemos, tanto nos lembramos, tanto queremos esquecer como queremos lembrar. Não estou seguro das palavras. Não estou seguro da cadência da confidência de um pai a um filho adulto. Mas devo dizer isto: esta história [a minha 50.ª crónica para o JM], porventura simples, de violência e de vingança, é afinal um elo, tenso como a corda de um arco, entre pai e filho – entre pais e filhos, entre idos e vivos.

[Crónica publicada no JM, 02-IX-2017.]

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