sábado, 10 de junho de 2017

Crónica 77 [Vizinhos]

A mulher entrou no quarto e farejou o ar peganhento de medo – as narinas do filho eram verdadeiros foles, insuflados pelo que vinha a caminho. A mãe apanhou o vime de cima da mesa, onde este instrumento descansava nas horas desempregadas, e cerrou-o bem na mão. Este maestro, com esta batuta – frenética –, iria dar começo ao concerto e ao bailado do dia. 
“Qu’eu – já – t’disse – [a cada berro, a cada sílaba rugida, descia ou subia o vime] p’ra – nun – ca – mais – t’a – tre – veres [o filho, de voz a tremer: “ai mãe, pel’amor de Deus”] – qu’eu – rach’-te – os – ossos – seu – estu – por [e assim continuava].”
O pai era mais austero – não apreciava tragédias longas, dramaturgia elaborada, tempos calmos enchidos com lágrimas e correrias de evasão. O pai era mais seco. Uma mão, aberta ou fechada, de uma só vez, era o suficiente para acometer o filho, que certa feita passou por cima do sofá, à conta da força empregue.
Uma comunhão estranha, a desta família. Os pais irmanavam-se nos castigos ao filho – e o filho transgredia e recebia castigos como quem aceitava uma dádiva e estabelecia um elo. [Não havendo carinhos de mãe e de pai, um vime ou uma chapada já eram alguma coisa – já eram um veículo de comunhão.]
Neste bairro ruidoso, os vizinhos iam sendo espectadores destas coisas quotidianas. Alguns viam com escândalo; outros não – enfim, não sendo hipócritas, não se podiam indignar com o que se passava em casa alheia quando na sua própria casa rareava a dignidade.
O casal do número ao lado, a quem o filho dos vizinhos tinha partido uma vez três ou quatro cântaros de sapatinhos, era quem mais se afligia com os gritos e os uivos. Este casal não tinha filhos e, por isso, suportavam-se, marido e mulher, da forma mais correcta que encontraram. A mulher, doméstica e boa costureira, envergava uma compleição melancólica de que o marido, um bom pedreiro, tentava, com trabalho incessante e pesado, evitar o contágio. [Tentar, tentava. Não conseguia.]
Uma vez disse ele à mulher que estava a precisar de um ajudante para os biscates do fim-de-semana. Ela ouviu mas não soube o que responder. O marido dirigiu-se aos vizinhos da casa ao lado, avistou-os, disse boa tarde e pediu para falar com eles. Para dar suporte às palavras, levantou a mão hesitante, sem ameaça, e disse que precisava de um servente: tinha reparado que o filho dos vizinhos já tinha idade e tamanho, pensou que certamente teria força, que talvez fosse bom para ele, que se calhar dava-lhe jeito dinheiro para a escola, que estava disposto a levá-lo e a pagar-lhe, que…
O pai, desconfiado – não disse, não diria, palavra nenhuma –, encolheu os ombros. A mãe atalhou logo: “Leve, leve. Leve ele. Se quiser pode ser durante a semana. Ele também nunca deu nada p’rá escola. Nem p’rá escola nem p’ra nada.”
Destarte, o vizinho pedreiro tomou a seu cargo o vizinho rapaz e encetou, com ele, um trabalho incessante e pesado – um trabalho de construção de dignidade. Ensinou-lhe a manejar materiais e ferramentas toscas e precisas – e a ser educado; ensinou-lhe a levantar casas – e a respeitar e ser respeitado. O rapaz aprendeu uma arte – e aprendeu, afinal, a ser homem.
Anos volvidos, o rapaz desta história, já adulto, falava com um amigo dos idos da adolescência, que nunca tinha saído do bairro. Recordavam as malhas que levaram e o amigo, jocoso, disse: “Então tu… eras um triste”. Ele devolveu: “Eu… eu tive sorte.”

[Crónica publicada no JM, 10-VI-2017, p. 2.]

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