sábado, 18 de fevereiro de 2017

Crónica 70 [A Gata]

A gata apareceu um dia e ali ficou.
No início, estranhou-se a aparição felina. Sem demora, contudo, arranjaram-se recipientes para água e para os restos da mesa, que foram postos à porta da casa. A gata foi governando assim a sua vida – aparecendo; desaparecendo. Os mais novos da família passaram a dedicar-lhe afagos, o que valia repreensões da mãe, pensativa dos lugares onde o bicho andava quando não era visto. Mas até os adultos se renderam. Nesta convivência, foi transposto o umbral – e ao bicho acabou por ser consentida a entrada, tentada e insinuada, na habitação cálida e ruidosa de gente.
A gata veio a se mostrar agradecida e a oferecer tributos aos beneméritos. Era, íamos esquecendo de dizer, preta, com algumas malhas brancas – nada fora do usual, portanto. Mas intrigava os humanos o facto de este padrão cromático ser perturbado por umas manchas tintas que o felino por vezes apresentava no focinho. Uma cor tinta – ou um vermelho desfalecido. Com efeito. A resposta para este enigma trouxe clamores de nojo e de medo à casa. Um dia, no tapete que ficava fora da porta de entrada, a gata tinha deitado o seu primeiro produto de homenagem, ao lado do qual se sentou, orgulhosa, à espera do reconhecimento. Era uma ratazana, morta, esventrada – um bicho de dois palmos de mão adulta, fora a cauda. Um dos filhos viu, deu o alarme, a mãe gritou, a filha gritou, os filhos ficaram maravilhados pelas aptidões guerreiras do felino. Face aos ruídos, a gata, confusa, desconfiada, balançou várias vezes a cabeça. Depois fugiu, perante o clamor crescente.
Em todo o caso, não desistiu – e voltou a tentar, mas de um jeito mais incisivo. Na ocasião que se seguiu, outro rato, do mesmo tamanho, foi depositado dentro de casa – e a gata voltou a postar-se, altiva, expectante. Neste ensejo, teve de fugir de imediato – a acompanhar as exclamações de horror, um sapato quase a atingiu. Mal-agradecida família – diria com certeza a gata, se falasse.
Esta família, nos dias defesos de trabalho, dividia-se entre o sofá e os cadeirões coçados e ficava assim aninhada. Na pequena sala-de-estar estendia-se um cobertor que conseguia alcançar, aéreo, todas as pernas e todos os braços friorentos. Um dia a gata – sem os bigodes tingidos de escarlate – subiu para o cobertor. Foi enxotada. Voltou a saltar. À terceira ou quarta vez deixaram-na ficar.
Tendo sido permitida esta convivência mais estreita – e já perdoada pelas oferendas hediondas que trouxera –, a gata deitou-se, num domingo frio de Fevereiro, sobre o cobertor. Estava a família com a atenção presa num filme qualquer. O bicho começou a lamber-se de um modo vigoroso que um dos filhos, inocente, achou estranho. Ninguém mais notou, imersos que estavam na televisão. De repente, da sua goela saiu um grito pungente. A mãe, que já tinha notado que a gata andava mais gorda – estaria prenhe –, disse: “Ela vai ter os gatinhos agora!”
A família tirou o felino da sala e trouxe-o até à entrada. Ali puseram um trapo velho. Viram, com compaixão e assombro, surgir uns gatinhos – cinco tostões de felino, a tremer de vida – que a gata-mãe ia lambendo, entre sofrimento e cuidados.
Um ou dois anos depois, a gata deixou de aparecer. A família nunca lhe deu um nome – nunca sentiu essa necessidade.
[Esta história, que aqui fica a despropósito, veio-me à ideia quando alguém me disse algo que tange mais ou menos assim: orgulhosos, altivos, nómadas, caprichosos – há pessoas que se julgam como gatos; mas quando caem, não caem de pé.]

[Crónica publicada no JM, 18-II-2017, p. 2.]

Sem comentários:

Enviar um comentário