terça-feira, 22 de novembro de 2011

Crónica 7

não me concedes a dádiva de te eclipsares da minha retina enevoada – os teus olhos de pedra lascada emparedados pelas mãos – os teus braços a manter o calor que sempre procuras junto ao peito e às têmporas
és a síntese irresoluta e irredutível de todas as coisas tocadas pelo dedo divino – a criação mineral sincrética – o fruto exumado da terra – os fluidos condutores – a depredação fértil – os suspiros que semeiam os oceanos – a matéria informe disforme – a negação do dia seguinte e do dia passado – o fim do dia inexistente
és a moldura das gramáticas e das noites de rebelião – o nó de enforcado que mantém a tribo – o cadafalso as catacumbas as lâminas as tenazes que salvam a tribo – a miríade de cores dos teus cabelos tinge todas as civilizações – todos os limbos – todos os purgatórios – todos os infernos – todas as ausências – todas as permanências – todos os inícios – todas as negações dos inícios e dos fins
ode a ti – oh mulher intemporal incomensurável insondável – instrumento e padrão das medidas – fora das medidas e das quantificações dos homens – dos homens tépidos líquidos brutos ordenados concluídos
ode e ódio a ti – mulher una e todas as mulheres – pelo homem dividido e pelos homens esboroados
vulto gravado nos átomos partículas gotas – o cosmos na vida íntima – a vida poderosa na vida ínfima – o sentido da inutilidade e da derrota advindos da raiva – do rancor – da força – dos semblantes fuscos e fundos da masculinidade transitória
o calor que cobiças – é a tua única centelha dependente de nutrimento – a tua porta aberta – obsessão após a necessidade – ou desprendimento e desprezo após a voragem e a saciedade – és porta aberta – e porta fechada – e os humores imperscrutáveis – se se ouve um sino não se conhece a liturgia – nem deus rejeita a insinuação completa – e até deus é conhecido e se deixa escrever
tu – tu – tu – vós – a mulher que diz no domínio do indizível – que faz no abismo do intangível – as mulheres que fecham e abrem o círculo da vertigem – da memória colectiva – sem tempo – de todo o tempo
eu – tenho uma memória milenar e individual a que prestar tributo

1 comentário:

  1. Raios. É isto mesmo. A leitura em staccato, em puro estado do combustão.

    Joana Aguiar

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